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28 de junho de 2006

SOM CINZA

Fim de noite e eu ouvindo Erik Satie, as teclas entre o computador e eu. Na boca um gosto fraco de café forte. Fumaça de cigarro entre os olhos e a tela, em espiral. Frio feito França. Teclo um OI para mim: harmonia. Ela nasceu da união de Marte com Vênus, a guerra e o amor. Sinto muito os dois agora. Estou escrevendo sem papel ou caneta, eu estranho um pouco o processo, nunca gostei disso. Crio com sentimento, consentimento é criar sem sentir; é preciso um esforço descomunal, incomum só que dos dois modos é normal. Estou a lembrar do sexo que fiz na noite de véspera, intenso como a lembrança do que foi ontem, hoje. Relaxo os ombros, o pescoço estala à esquerda ao me endireitar. O telefone toca uma vez e pára, é o suficiente. Não é para mim, se não me engano. Quanta ternura pode haver no olhar de uma cão? Só quer comida ou carinho, não está interessado no porquê foi recolhido da rua ou em onde será enterrado quando morrer... Quero aprender com este olhar feroz de manso animal. Sei um pouco como é ao pensar nisso, não posso esquecer de lembrar desse poder. Teclo “salvar”. De repente sinto-me em grande perigo e me ponho aflito. Sou do tipo que treme sujando de cinzas a página(o teclado), tremo ao terminar de urinar, ao começar a beber qualquer conhaque, até de frio. A música devagar diminui o ritmo, torna-se mais grave e silencia. Recomeça quando eu acendo outro cigarro com um fósforo, que enche deste odor o meu ar. Tantos pensamentos cinzentos no cinzeiro, já é hora de o esvaziar. O que eu gostaria de pensar agora? Certamente não em algo útil como uma pergunta. Poesia talvez. Levanto-me da cadeira no meio desta grase para folhear algo na estante. Três velhos livros chatos: nA Arte Poética Aristóteles diz que “O poeta faz simulacros com simulacros, assim afastado do vero a enorme distância. Vive, pois, no erro e não tem utilidade alguma.”; em uma Introdução À Poética Clássica encontro Theóphile Gautier dizendo “ Não sei quem disse, não sei onde, que a literatura e as artes influem sobre os costumes. Seja quem for, trata-se indubitavelmente de um grande tolo; é como se disséssemos que as ervilhas produzem a primavera.”; um Dicionário De Arte Poética tenta definir, “Utilitarismo – conceito de literatura, como de toda arte, voltada para fins didáticos ou pedagógicos, com a aplicação do preceito latino do utile dulce, combinação do útil com o agradável.” Então a brasa do meu cigarro pendendo comprida no cinzeiro cai para dentro com um mínimo de ruído. E o nosso pianista se levanta para ouvir saindo da platéia uma ruidosa salva de palmas. Eu acho que consigo transformar isto em um bom começo.

27 de junho de 2006

A L T O R


Eu cheguei a pensar em deletar este blog ou simplesmente não voltar mais aqui. Mas, afinal, decidi visitá-lo e trocar com ele algumas idéias; acabei postando algo integralmente auto-biográfico da última vez, espero que também considere-se isso como literatura. Agora é a primeira vez que me refiro ao blog no blog, espero ainda estar desconstruindo algo ao escrever isto. O fato é que o meu texto vem sendo colocado à prova a medida em que estou escrevendo desta vez um livro bem diferente do primeiro. Talvez isto seja relevante. Quase perdi minha mente nos últimos anos enquanto o compunha, me decompunha; comecei essa história de blog para dar um tempo, quem sabe promover o livro publicando alguns trechos, e de fato foi útil ainda que não em definitivo. Nos últimos meses estive fora de mim a um ponto sem precedentes, era mesmo melhor tentar voltar. Sinto-me benvindo embora maldito. A minha vida não é tão fácil como a minha arte. Mas por enquanto não vou mais abrir mão de existir na vida real em decorrência de qualquer processo criativo ficcional. Ser eu também pode ser bom, e viver neste mundo muito mais agradável para quem como eu não está muito acostumado. Tudo há pouco ainda estava de cabeça para baixo, neste momento estou na ponta dos pés querendo mirar o que vem a seguir. Sinto bastante ansiedade, algum medo, uma apreensão. Mas nunca fui tão livre e estive tão pleno. Seja como for eu acabei sobrevivendo à experiência, à inexperiência. Relendo o que acabei de registrar me surpreendo com a capacidade humana de mudar, não estou mais mudo, mas mudo, tão logo não vou me calar. O blog é o mesmo de antes, nem tanto o autor.

6 de junho de 2006

666,6

São Caos, 06 de junho de 2006.
Anna (palíndromano eu, ela minhamusa)

“Beautiful,
a bit temperamental
Beautiful,
only slightly mental...
Beautiful”
Quase cliché essa noite. Começou de dia, um outro dia, ou numa outra? Eu sou romântico, mas assim eu não bem fico, prefiro ser de um tipo atípico... O fato é que conheci Anna depois de muito tempo de nos sermos apresentados, de nos apresentarmos; no presente, hoje, agora há pouco (agora eu acabei de escrever a palavra “escrever” e são uma e onze da manhã), eu disse a ela antes de começarmos a beber, embora já apaixonados, que havia pensado em trazer-lhe uma rosa de presente, não a tendo trazido para não atender ao chamado do lugar comum, do chamado cliché.

Ela estudou no mesmo colégio em que estudei antes da universidade, mesmo curso same curse, ela gostava e hoje odeia e eu odiava e hoje odeio; não nos conhecíamos, pois ela era legal e eu a achava ilegal, embora eu não fosse legal. Ela se vestia de colorido e tinha muitos amigos e eu, não sei onde estava com a cabeça, não a vi; ela trabalhou comigo em meu primeiro emprego e nem aí. Desatino? Destino! Daquela época estivemos com outros até um tempo atrás, ela com o Sun e eu com a Cat, duas pessoas pessoalmente únicas, eu não o conheci e nem ela a ela, ambos nota dez, Anna e eu, ele com ela e com a outra eu, durante cinco anos namorando ela e eu estivemos nos achando demais com os demais, os dois eram. Anna e eu somos o que estamos, como explicar? É fogo... ai, quente; I can’t.

Do meu ponto de vista ainda bêbado a esta hora, eu, sem preocupar-me com rima ou demora, posso como pude escrever (estou a escrever, só quis evitar do gerúndio a longa duração, o que para mim é fase comprida como é longa a frase) que é melhor não tentar fazer tudo caber aqui desde o começo pois mesmo não houve um começo, está havendo.

Eu estava solteiro e não me engano há seis meses e sempre digo e meu círculo sempre concorda que em certos círculos isto é meio ano. Anna é mais precoce e já estava em outra, com outro, há inteiros dois. Reencontramo-nos por acaso, na estação Pé do metrô há mais ou menos um mês, há nove anos sem contato. Foi legal, mas não demais e se houve algo de excepcional nesse reencontro, depois nós nos confessaríamos não termos percebido. O fato é que nos reconhecemos e por qualquer acaso foi bom, rápido e furtivo, mas bom. Áh... há... não. Havia um amigo dela que estava junto nesse dia (era de noite, eles voltando do cinema e eu de palestra sobre temas afins, a conversa começou em Pasolini, héin), e os temas foram abertos para que ele não ficasse de fora, mas infelizmente não me lembro de seu nome, rosto ou conversa, e já ela... uma análise que faço agora... ela não me saiu da cabeça. Como sempre acontece, e-mails e telefones, como nunca acontece, deu certo. Reencontramos-nos, de novo.

Ela viaja bastante, a trabalho ou passeio, eu trabalho e passeio, ou viajo pouco. Ia a Valsador (Ctrl + B) onde estive nas últimas férias, eu ficaria querendo voltar: leve contigo o meu livro eu disse, diga-me depois o que achou, uma opinião feminina eu preciso, e ela eu fiz Letras e tal e contou uma história, e eu eu fiz História, e ela isso é muito legal. Então houve um hiato fundamental, daqui agora interpreto como um limbo abismal e que nós nos esquecemos de lembrar ser impossível lembrar de se esquecer. Ela surtou lendo meu livro e eu surtei esperando uma opinião dela, à distância e tão próximos. Re-reencontramo-nos um dia; íamos a algum lugar, mas tiramos o dia para conversar; e pela primeira vez senti que do diálogo participavam dois, mesmo durante os monólogos. Anna me deu uma aula sobre mim, senti-me nu; e o trajeto de sua leitura de mim demonstrou-me o que era ela, ela era por inteiro. E o nós estava completo.

Quase. Embora estivéssemos mutuamente numa empolgação crescente, tenhamos nos identificado como se nos soubéssemos de cór e de trás para frente, no vai e vem da conversa ótima de trem ou a pé pela cidade caótica, acho que por dentro um ser ou não cerveja, nós nos existíamos num para sempre ainda ausente. A verdade é que ela não mentiu, minto se disser não saber profundo o que sentiu, demorou um pouco, mais que um pouco, uma esperança ou uma fé, mas não se omitiu, o que eu não queria ouvir ela me dizia, a verdade é que ela namorava. Hoje acho que foi melhor assim, sabendo já o que aconteceu depois... imagino o que com nós dois poderia ter acontecido, estar acontecendo, se assim não tivesse sido.

Loucura. Estivemos ainda muito tempo juntos, até além do que deveríamos, mas aquém do que poderíamos. Aquele dia foi um prelúdio de hoje? E se hoje foi só um prelúdio? O que então exata e definitivamente significará “lúdio”? Um dicionário verde me contou que esse substantivo masculino é sinônimo de ludião (do latim, ludiu.) e que, este, por sua vez, também um “s.m.” é relativo à física: Aparelho destinado ao estudo dos diferentes casos que pode apresentar um corpo mergulhado na água. (do latim, ludione.). Embora sinonimem-se em português assim, d’outra forma o são, insanamente, em latim. É peculiar e divertido que ditos contradigam-se vertidos para intrigar a mim. Enfim, o que poderá acorrer na água conosco de tão intenso e poderoso e agressivo que tudo o que estamos vivendo agora sob o signo do fogo seja apenas mero aperitivo? Como as palavras são experiência é só questão de experimentar.

Acho que nós dois sem saber definir estivemos pensando assim. Uma semana depois e, obviamente aqui se delineia nitidamente uma curva de tempo decrescente de nove anos primeiro e um mês depois e sete dias então, combinamos voltar a nos encontrar. Estamos nos aproximando... andando da Praça da Reprivada à Whosevalt, um teatrinho picante de Sade, uma aguardente com gosto de carvalho e muita vontade... fazia um frio... o que fazer? ela disse, quer trepar? disse eu. Fomos. Não tão fácil, queríamos, mas queríamos mais. O que eu sentia ela me disse sentir o que eu sentia, ela sentia o que eu lhe disse sentir o que ela sentia. Não tão rápido, andanandanandando muito. De braços dados subindo a Rua da Insolação até a Avenida Capetalista e descendo a Aogosto então, não estávamos perdidos é que tínhamos nos encontrado. Anti-socráticamente não sabíamos que sabíamos tudo. Paramos num bar: beber e conversar, como se não pudéssemos parar.

Quando saímos foi para continuar, eram já umas quatro da manhã de domingo e tínhamos nos beijado já em algum ponto. Foi lindo como se fosse o primeiro, mas foi. Logo viriam outros e a noite não queria acabar, a vida parecia começar ali. Foi como se nós dois, perdidos numa suja, quiséssemos nos lambuzar, chafurdar naquela lama primordial do amor. Primitivos então, queríamos nos aninhar um no outro e consumar o que nos consumia, ardíamos. Fogo e ar. Andamos ainda muito sem parar de conversar um instante sequer o tempo todo, lembro-me de tudo, pois era o melhor assunto do mundo, o nada e nós e tudo. Os dois. Um só nunca mais sozinhos.

Dessa forma nem sei como chegamos à Santa Ervílha onde um motel recebeu-nos ao fim da noite por módica quantia, ela sem R.G. maior do que isso, corredores e portas das nossas mentes na dela eu e ela na minha, nós entramos pela nossa, estava entreaberta. Fechou-se atrás de nós deixando o resto do mundo de castigo para cometer-mos o que nos acometia. Metemos-nos um no outro e quatorze horas depois já vestidos é como se nunca tivéssemos saído; o sol que não vimos chegar e se ir, na verdade, penso que nem existiu.

Depois tivemos de nos haver, ela em falta com sua família de plantão e eu com o plantão no trabalho ao qual faltei. Mas já estávamos saciados do que mais queríamos a despeito do trabalho e da família de que precisamos. É algo impreciso querer. E então fomos dormir.

Nunca uma segunda feira foi tão boa; estivemos como bobos e mantivemos contato. Combinamos tanto... combinamos algo para logo mais. E é só encontrá-la para o resto sumir. Anna e eu como namorados por aí de novo, e como nunca. Como fogo que queima, que teima... melhor do que antes, um do outro um outro dia, à noitinha. Por inteiro, mas como não podia ser a noite inteira e ainda procurávamos um motivo, bebemos um vinho memorável, memorioso e emotivo, que nos fez nostálgicos e elucidativos, sedados, imaginosos, instáveis e alucinógenos um para o outro, foi só um motivo para nos abraçar mais abrasados, fogosos, ativos. Mas não tínhamos que voltar? Então mais apaixonados do que bêbados, como ébrios tocamos fogo na cidade. Indecentes incandescíamos. Não havia sobrado muita coisa de mim após nos despedirmos, só as cinzas. As palavras dela na minha cabeça. O nome dela: Anna. Sim... A, N, N, A. Nunca fora tão bom viver.

Eu voltei sozinho para casa, pois precisávamos assim fazer, mas eu tinha um pressentimento de que não deveríamos mais desgrudar. Uma coisa é se eu fosse com ela, outra se ela viesse comigo. Eu me explico. Solitário no vagão em que nos despedimos, donde ela saltou saltitante, onde eu corri atrás relutante, segui meu caminho fumando sozinho e na madrugada vazia tomei o último ônibus para casa, igualmente sem ela, eu era o vazio, mesmo repleto dela eu pensava em logo chegar e sentar-me nesta cadeira diante do branco que saberia não ter, escrever o que vim pensando, pensando nela. Escolher algo para ouvir condizente com a noitada, com este novo dia, ou com o Ideal que sentia, respectivamente: o “Black Sabbath” do Black Sabbath? ou seu contrário, “A Love Supreme” do John Coltrane? Então acabaria escolhendo o “3.. 6.. 6 Seconds Of Light” do Belle & Sebastian e tomaria uns versos da música “Beautiful” como epígrafe pondo-me então a escrever isto aqui, hoje, só para ela. Mas não escrevi, eu viria a morrer de amor pouco antes, morri.

Leve uma rosa para mim. Seria cliché? Quase...

Seis horas